Prof. Leonardo Miranda
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Ontem me encontrei com um amigo! Fazia quase dois anos que não nos víamos! Ele, como de costume, não me deu um abraço ou sequer esboçou aquela reação tradicional dos gestos espalhafatosos e gargalhadas altas típicos do brasileiro! Mas, já iniciou nossa conversa brincando a seu estilo dando assim, o seu peculiar sinal de que estava feliz em me ver.
De um simples encontro proposital, uma simples visita que decidi fazer em sua loja de artigos para informática no novo endereço, que planejei que durasse não mais que 10 a 15 minutos, ficamos pouco mais de 1 hora conversando sobre nosso assunto favorito: teologia e nossa leitura sobre a situação da Igreja Evangélica Brasileira. Ficamos ali como se realmente tivéssemos mesmo muito a acrescentar um para o outro. Trocamos os novos números de telefone e endereço e marcamos um reencontro; desta vez, acompanhados das esposas!
O interessante de se rever um amigo, como me disse certa ocasião outro amigo, é que duas pessoas podem ficar até 10 anos sem se verem, mas se forem amigas de verdade, quando se encontram é como se tivessem se encontrado no dia anterior! O carinho é o mesmo, a atenção é a mesma, o respeito é o mesmo e as “caçoadas” são as mesmas! Obviamente que haverá mais novidades, mais maturidade decorrente das experiências de vida, uma visão mais ampla e mais crítica da realidade, mas nada que mude a essência da amizade. Esta essência é bíblica! Fiquei muito feliz em rever meu amigo! Da lembrança noturna deste encontro iniciei esta reflexão que ora compartilho!
Infelizmente hoje percebemos certo distanciamento dos princípios bíblicos decorrente de distorções nas Escrituras, com interpretações alienantes e, consequentemente, imprudentes. Não há consideração pelo contexto em que foram produzidos os mais diversos ensinamentos bíblicos, apenas uma tentativa de contextualizá-los, de forma honesta ou manipuladora, mas que resulta da mesma forma em desvirtuamento e engano. O resultado é uma vida de incertezas, dúvidas, culpas, traumas e separatismo comportamental como se qualquer amizade, principalmente fora dos círculos cristãos, fosse uma armadilha do Diabo.
É mesmo impressionante o que se ensina contra a amizade! Deformidades doutrinárias têm sido criadas no seio cristão sob a alegação de novas revelações ou novas compreensões dadas e percebidas por uma espécie de um “6º sentido” místico conhecido popularmente como “sentido espiritual” que é oculto ao sentido literal e dado somente aos iluminados. Os possuidores desta forma de “espiritualidade” ensinam sem nenhum pudor que “... o amigo do mundo é inimigo de Deus” (Tiago 4:4) e “maldito é o homem que confia no homem [... mas] bendito é o homem que confia no Senhor” (Jeremias 17:5 e 9). Com isso, sem o menor cuidado em buscar o correto sentido para textos isolados, ensinam abertamente sob a capa protetora do misticismo exacerbado que nossa única amizade deve ser com o Senhor Jesus e não podemos confiar em mais ninguém!
A situação chega a tal ponto que, por meio do ensino sobre a dualidade entre a batalha cósmica do bem contra o mal, embutido nos discursos de batalha espiritual de alguns segmentos ditos “evangélicos”, onde se ensina que Deus e o Diabo ficam lutando o dia todo para disputar a vida do ser humano, qualquer que seja este, o cristão deve tomar muito cuidado porque uma oração contrária, um jejum contrário ou mesmo uma palavra ou olhar de inveja podem destruir a sua vida! Portanto, ninguém nunca pode saber de seus projetos ou suas ações até que elas estejam terminadas, concluídas, para que tudo dê certo; e muito menos de suas dificuldades ou angústias. Muito provavelmente, tanto quem ensina esta falsa doutrina, quanto quem acredita nela não deve conhecer a história de amizade entre Davi de Jônatas (1º Samuel 18:1-5 e 20:1-42) e muito menos o texto: “Portanto confessai os vossos pecados uns para os outros, e orai uns pelos outros para serdes curados. A oração de um justo é poderosa e eficaz” (Tiago 5:16).
Talvez você pense, “... mas isso hoje não é mais possível” ou “este argumento é ingênuo, pois realmente não posso confiar em todas as pessoas, nem mesmo as que fazem parte da Igreja”. De fato! Não é mesmo possível confiar em todas as pessoas que hoje fazem parte da Igreja, e muito provavelmente naquela época em que o texto foi escrito também não, e certamente que em nenhum momento da História do Cristianismo não foi possível confiar em todos os pertencentes da religião. Até porque há diferentes graus de maturidade na fé e algumas pessoas sempre se encontrarão naquele estágio de “eternos neófitos” (eternos novos convertidos), ou seja, nunca amadurecerão para uma relação mais íntima com Deus, consigo e com as demais pessoas. Contudo, o aconselhamento cristão, a ética cristã, a comunhão apregoada nas Escrituras neotestamentárias e o fato de que os ensinamentos nelas contidos não terem sido escritos por acaso, mas foram inspirados por Deus, servem como evidências que apontam para a possibilidade e a importância das amizades verdadeiras, consolidadas pela ação redentora de Jesus e pela obra do Espírito Santo na transformação do caráter.
E toda esta conclusão pela ótica da Teologia! E o que dizer das conclusões viáveis pela ótica das ciências humanas? Por meio de seu estudo descobrimos que o ser humano tem necessidades individuais de estar bem consigo, isto é, estar em equilíbrio emocional e se aceitar com suas virtudes e suas falhas, e necessidades sociais de ser aceito pelo outro e aceitá-lo também dentro dos mesmos parâmetros, ou seja, com as virtudes e as falhas. Nenhum ser humano é uma ilha!
E num diálogo entre a Teologia e as ciências humanas? O que se conclui? Qual o resultado desta “conversa”? Simples: considerando a existência e manifestação da Trindade (Deus como Pai, Filho e Espírito Santo) nem entre o ser divino existe isolacionismo, mas sim três pessoas divinas que convivem harmoniosamente entre si, numa relação que chamamos de pericorese. É com base na existência da Trindade e considerando que o ser humano é a Imagem e Semelhança de Deus, que podemos afirmar que homem e mulher não foram criados para viver isolados e de modo egoísta. Antes, é por isso que possuem a necessidade social de serem aceitos e aceitarem o outro. Dessa dedução podemos afirmar até mesmo a possibilidade de verdadeira amizade entre cristãos e não cristãos dentro dos limites éticos estabelecidos pela bíblia, afinal, amizade de verdade nunca significou perfeição ideológica com ausência de falhas ou desapontamentos. Não fomos chamados por Cristo como Igreja para vivermos fora deste mundo, mas sim, para vivermos nele com uma visão comprometida com os valores do Reino de Deus, fazendo a diferença, principalmente religiosa e ética (João 17:11 e 15).
Como já mencionei o resultado deste tipo de ensinamento distorcido extraído de textos bíblicos isolados, desvinculados de seu respectivo contexto contra a amizade, é uma vida supostamente cristã, porém completamente desvinculada das relações sociais dentro e fora do ambiente familiar, da instância religiosa, e nos âmbitos profissional e escolar. Uma indução clara ao individualismo e ao egoísmo. É necessário que se entenda o que está por trás destes ensinos. Aponto o que acredito serem as principais causas:
1º) A autonomia da subjetividade: Quem lê a bíblia e a interpreta tomando para si ou ensinando para outros sob o pretexto do “sentido espiritual” desvinculado do sentido histórico e da intenção do autor inspirado, faz isso justificando-se pela esfera do misticismo que, se não for coerentemente vivido, pode trazer mais prejuízos espirituais e emocionais do que benefícios. O intérprete tende a desprezar os princípios da hermenêutica bíblica alegando que tal exercício “esfriaria sua fé ou espiritualidade”.
2º) O valor exagerado dado ao misticismo: Como vários autores têm percebido e escrito, nosso país é religiosamente plural. A miscelânea religiosa provocada pelo contado inter-religioso e mais especificamente o sincretismo de crenças que tem sido absorvido pela Igreja, pela falta dos devidos limites ético-bíblicos, possibilita que muitos cristãos tenham medo de “forças do mal” presentes na realidade. Por meio destes ensinamentos as pessoas são levadas a terem medo umas das outras; são vistas como portadoras de inveja, cobiça e calúnia. Há também os momentos em que todas as ações humanas são demonizadas, isto é, são frutos da ação de demônios usando as pessoas contra o cristão. Contudo, este mesmo cristão se esquece que ele não está recebendo este ensinamento sozinho; pelo contrário, ele está num ambiente coletivo e muito provavelmente outras pessoas dentro do templo, estão pensando a mesma coisa dele. É mesmo lamentável que estes ensinamentos sejam evidenciados, além das demais religiões, igualmente, no cristianismo evangélico de vertente menos histórica, principalmente da segunda metade do século XX em diante.
3º) O valor distorcido dado ao pragmatismo: Na tentativa de contextualização do ensinamento bíblico, linguagens, modismos e práticas estranhas ao Evangelho, vindas de outras religiões são realizados de modo completamente acrítico e pragmático. Em outras palavras, quando alguém ensina as falsas doutrinas contra a amizade e outros princípios bíblicos, é como se dissesse: “está dando certo, então é porque está certo!”
4º) A falta de conhecimento coerente da Bíblia: Vários são os textos bíblicos que apontam para a importância de se conhecer a Bíblia. Não por ser ela um livro meramente ético, mas por se tratar do livro inspirado por Deus e apto para educar o cristão, trabalhando em seu caráter, moldando-o conforme o propósito salvífico de Deus, cuja principal realização na cruz não foi ensinar o individualismo e o egoísmo, mas sim, providenciar a vida eterna para que o ser humano viva em comunhão com o divino e com o próximo.
Enfim, a amizade é bíblica sim! É uma dádiva de Deus! Com quem quer que seja, desde que sejam considerados os limites ético-bíblicos! Por isso, deixo um provérbio bíblico para nossa meditação; da mesma bíblia usada erroneamente para separar cristãos:
“Em todo o tempo ama o amigo, e na angústia nasce o irmão.” (Provérbios 17:17)
Pense nisso!